Do G1-É difícil encontrar alguém que nunca tenha se encantado com um origami. As complexas figuras criadas a partir de folhas de papel impressionam. Não à toa, a arte de dobraduras, como é conhecida, atravessa gerações em todo o mundo há mais de mil anos.
Foi este mesmo fascínio que instigou uma pesquisadora em design da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru (SP) a utilizar as técnicas do origami de uma maneira diferente: na medicina.
Em seu doutorado, Samanta Teixeira tem se baseado na linguagem das dobraduras para melhorar a eficácia e o uso do espéculo vaginal e da bolsa de morcelamento, dois instrumentos clínicos e cirúrgicos muito importantes.
Os dois aparatos, embora sejam utilizados para finalidades diferentes, têm a mesma necessidade: precisam ser compactos no início e grandes no final. Afinal, em cirurgias, quanto menor o corte, mais rápida é a recuperação do paciente.
O espéculo vaginal é conhecido por sua aplicação no Papanicolau, exame realizado como prevenção ao câncer de colo de útero. Trata-se de uma ferramenta que permite aos ginecologistas abrirem as paredes da vagina para que se possa observar o colo do útero e dali coletar materiais de interesse.
Já a bolsa de morcelamento é utilizada em cirurgias realizadas na região do abdome, como a laparoscopia e a histerectomia, nome dado à remoção do útero. Ela serve para auxiliar os cirurgiões a retirar ou inserir tecidos abdominais.
“Só que não existe nenhum tipo de fixação de dobras para esses materiais. Eles ainda são bastante rudimentares aqui no Brasil”, diz a pesquisadora, completando que sua técnica é inédita no país.
Daí a ideia de aprimorá-los. Segundo Samanta, o design de origami pode permitir que a abertura das lâminas do espéculo vaginal aconteça de maneira mais suave, o que tornaria o procedimento de abertura do canal vaginal mais confortável para as pacientes.
Além disso, o conceito das dobraduras também pode fazer com que as bolsas de morcelamento, que atualmente têm diâmetro imutável, sejam compactadas ou expandidas dentro da cavidade abdominal.
Dessa forma, as cirurgias se tornariam menos invasivas, uma vez que, pequenas, as bolsas não necessitariam de um corte significativo para serem inseridas.
"O design de dobras pode ajudar a diminuir o tempo de execução dos procedimentos e facilitar o acesso às partes do corpo desejadas de forma precisa, contribuindo para uma melhor recuperação do paciente", diz.
“Esse é um dos princípios básicos do origami: ele pode ser pequeno para a viagem e grande para o destino”, explica Samanta.
O design do origami Magic Ball, representado na imagem, é utilizado nos stents cardíacos, tubos cirúrgicos flexíveis que se compactam ao serem inseridos no paciente e se expandem ao chegarem ao problema. Os stents são usados para desobstruir veias sanguíneas entupidas, por exemplo — Foto: Arquivo pessoal
O design do origami Magic Ball, representado na imagem, é utilizado nos stents cardíacos, tubos cirúrgicos flexíveis que se compactam ao serem inseridos no paciente e se expandem ao chegarem ao problema. Os stents são usados para desobstruir veias sanguíneas entupidas, por exemplo.
Anos de pesquisa
Samanta começou a estudar a aplicação do origami nas ciências em 2010. “Quando eu entrei na faculdade, um professor me disse que eu poderia transformar esse meu hobby em uma ferramenta poderosa de pesquisa”, conta.
Da iniciação científica ao mestrado, a pesquisadora se dedicou a investigar como a arte das dobraduras saltou do campo cultural para alcançar as áreas acadêmica e tecnológica.
Agora, durante o doutorado na Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da Unesp, ela usa a medicina como recorte específico para dar continuidade às investigações.
Para fundamentar a pesquisa atual, Samanta aplicou dois questionários.
Inicialmente, pediu para que médicos de universidades públicas indicassem dois dos instrumentos com que mais tinham dificuldade para usar no dia a dia. Foi a partir destes relatos que ela chegou à escolha do espéculo vaginal e da bolsa de morcelamento.
Depois, para descobrir qual era a perspectiva dos pacientes em relação aos aparatos, aplicou um segundo questionário.
Como a bolsa de morcelamento só é utilizada em procedimentos com sedação - ou seja, os pacientes não percebem o instrumento -, Samanta perguntou às mulheres sobre suas experiências com o exame de Papanicolau, que é feito com o espéculo vaginal.
As respostas obtidas pela pesquisadora revelaram um grande problema: das 152 mulheres perguntadas, 84% declararam que já sentiram desconforto durante o exame. Quase metade delas, 47%, descreveu esse desconforto como intenso.
“O problema é grande. Em termos de eficiência, ergonomia e conforto do paciente, há muito o que ser melhorado”, diz.
Origami e ciência lado a lado
Samanta não foi a única da comunidade acadêmica a se interessar pelas possibilidades científicas dos origamis. Na verdade, pesquisadores de outros países já se aventuravam por este desafio há vários anos - mais de trinta, para ser exato.
Na década de 80, o design de origami foi utilizado na engenharia espacial para lançar o telescópio Eyeglass ao espaço. A ideia era que o instrumento pudesse ser dobrado para caber no foguete e, depois, em órbita, se desdobrasse para exercer sua função.
Desde 2006, o raciocínio das dobras tem sido aplicado em medicamentos. É a partir da técnica de dobraduras que os fármacos são compactados em cápsulas e, ao serem ingeridos, se desdobram dentro do organismo.
Samanta Teixeira estuda a aplicação de técnicas de origami na ciência há mais de dez anos. Em 2019, participou de um congresso na Universidade de Porto, em Portugal — Foto: Arquivo pessoal
Agora, com a pesquisa de Samanta, aumenta a possibilidade de que o origami também ofereça grandes soluções para a medicina no Brasil.
Segundo a pesquisadora, a expectativa é de que o estudo leve à criação de novas versões do espéculo vaginal e da bolsa de morcelamento, menos invasivas e mais eficientes.
Enquanto isso, ela desenvolve novos designs para os instrumentos a partir de protótipos feitos com materiais biodegradáveis por meio de máquinas de corte a laser e impressoras 3D. A ideia é que eles possam ser patenteados e produzidos para o mercado no futuro.
Samanta também pretende disponibilizar ao público o corte do novo modelo de espéculo vaginal para que as mulheres possam produzi-lo por conta própria, em casa ou em instituições.
“Nós, mulheres, precisamos conhecer mais o nosso corpo para podermos exigir melhorias nos procedimentos médicos. E nada melhor do que termos acesso a esse conhecimento por meio desses instrumentais”, diz.