Offline
'Cotista, pobre'; 'Sou playboy, seu pai é motoboy': por que luta de classes domina jogos universitários
Gerais
Publicado em 25/11/2024

- “Federal, fala baixinho, quem tem 10 mil não envelhece no cursinho!” x “10 mil reais é o preço que se paga por não ter estudado mais!”
- “Eu sou solidário, pago seu curso e vou pagar o seu salário” x “Explode o seu cartão, na maior mensalidade, é lindo ver seu pai pagando a tua e a minha faculdade.”

Os versos acima, entoados por estudantes durante jogos universitários no Brasil, evidenciam que uma das modalidades dessas competições é… a luta de classes. Em uma disputa paralela, que frequentemente inclui ofensas preconceituosas (e até racistas) disfarçadas de “brincadeiras”, estão grupos de torcedores que, por razões financeiras, étnicas ou intelectuais, julgam-se superiores aos demais. Mandam um constante lembrete aos seus oponentes: “aqui não é seu lugar”.

 “Nos jogos jurídicos do ano passado [em Vassouras, RJ], fiquei chocada. Antes da partida, estudantes [de uma faculdade particular do Rio] jogaram notas falsas de dinheiro na quadra, para mostrar que o pai deles pode pagar uma mensalidade”, diz Thamires Soares, aluna de direito, aprovada por cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

“Durante muito tempo, a gente, que é pobre e preto, não acessava a universidade pública. Agora que conseguiu, precisa vivenciar isso? Reforça o sentimento de não pertencimento.”
Na mesma cidade, um ano antes, alunos de medicina da Unig cantaram os versos: “Sou playboy, não tenho culpa se seu pai é motoboy”.

➡️São casos que se assemelham ao que aconteceu em Americana, em 16 de novembro, quando estudantes de direito da PUC-SP, na torcida, gritaram “cotistas” e “pobres” para colegas da USP. Nesta reportagem, o g1 mostra que esses episódios não são novidade nem exceção: reproduzem um comportamento violento e elitista que existe, segundo os especialistas ouvidos, desde a origem do esporte moderno.

Em resumo, você verá que:

A origem do futebol, na Inglaterra, já foi motivada por um conflito de classes.
A desigualdade social e o entendimento de que determinados espaços só podem ser frequentados pela elite (seja a “intelectual” ou a econômica) motivam as ofensas.
A rotina de bebida alcoólica e privação de sono, típica de jogos universitários, inflama ainda mais as intrigas.
Em determinados casos, as provocações não são apenas antiéticas, mas também criminosas (já houve registro de casca de banana sendo jogada em campo, para jogadores negros).
A naturalização da violência verbal nos jogos universitários precisa ser rompida, defendem psicólogos esportivos e juristas: é necessário garantir que os responsáveis enfrentem moralmente e juridicamente as consequências de seus atos.

 A luta de classes sempre existiu no esporte moderno, explica pesquisador

Felipe Tavares Paes Lopes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador da violência no futebol, reforça que o que acontece nos jogos universitários segue a mesma lógica já observada na origem dos esportes modernos.

“O futebol emerge de uma luta de classes entre professores e alunos na Inglaterra do século XVIII e XIX. Os docentes vinham de classes sociais inferiores, enquanto os estudantes das escolas públicas eram da elite, da aristocracia. Era uma competição extremamente violenta, e o controle da disciplina na escola era difícil, por causa dessa estratificação da sociedade”, afirma o pesquisador.

 Ele conta que foi feito um “pacto social”: os jovens poderiam jogar futebol e organizar os espaços de lazer nos colégios, desde que, dentro da sala de aula, obedecessem aos mestres.

No rugby, também na Inglaterra do século XIX, uma divergência por questões financeiras acabou levando à criação de duas ligas diferentes: uma para times da aristocracia, que defendiam que o esporte fosse apenas voltado ao lazer, sem remuneração aos jogadores; e uma para os clubes do proletariado, que reivindicavam o pagamento de alguma compensação aos atletas, já que eles tinham de faltar no emprego para jogar.

“É sempre importante lembrar que os pobres foram historicamente alijados das práticas esportivas”, diz Katia Rubio, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “A competição é a metáfora de um conflito que não se realiza de forma concreta. É a metáfora da guerra.”
No Brasil, esses atritos sociais já eram observados no início do século XX, quando, por exemplo, torcedores da zona sul do Rio de Janeiro, de bairros mais “nobres”, eram recebidos de forma hostil no subúrbio carioca, explica Lopes, da Unicamp.

Jogos universitários: bebida 'incendeia', mas câmeras intimidam
“Fui técnico de time universitário por muitos anos, e esses conflitos são seculares. Sempre aconteceram”, diz Flavio Venucini, professor da USP e membro do laboratório de psicologia do esporte da Unesp de Rio Claro (SP).

 “Em grupo, tudo é potencializado, porque os jovens se sentem protegidos. E pense: são muitas baladas, bebida alcoólica; as coisas vão ficando piores no avançar dos dias da competição. O ambiente já está contaminado, aí você soma isso com a privação de sono e os preconceitos existentes. A situação sai do controle. É um efeito manada.”

A psicóloga Rita Calegari também reforça que, “de forma solitária, provavelmente os alunos não estariam agindo assim”. “O grupo acaba motivando um comportamento disruptivo. Um jovem sozinho tem menos potência e menos predisposição do que coletivamente a fazer comportamentos discriminatórios", afirma.

Venucini diz que, há algumas décadas, os xingamentos que ouvia nesses jogos eram ainda mais “pesados”, com misoginia mais ostensiva e palavrões. Ele acredita que, com a popularização dos smartphones e o avanço das redes sociais, os jovens tenham ficado mais receosos de serem flagrados proferindo alguma ofensa.

Os estudantes da PUC-SP, por exemplo, perderam o emprego em escritórios importantes de advocacia depois que o vídeo dos xingamentos viralizou na internet.

“O conflito entre faculdades públicas e privadas sempre existiu. Mas vemos uma mudança de pauta. Os temas sensíveis foram modificados, sempre em função da vulnerabilidade de cada grupo. Agora, é focado em diminuir os cotistas ou, do outro lado, os ‘filhinhos de papai’. São ataques multilaterais”, afirma o professor.

 Mas é importante notar que há uma diferença entre os tipos de provocação:

Quando a ofensa resvala em questões de gênero, de raça, de nacionalidade, de deficiência ou de idade (no caso de idosos), há um crime de discriminação, previsto tanto no Código Penal e na Lei nº 7.716 (sobre preconceito de raça ou de cor) como também no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, explica a advogada Amanda Sato.
Se as “piadas” forem sobre um ser supostamente mais inteligente do que o outro, deixam de ser um problema do direito, afirma Wallace Corbo, professor de direito constitucional da UERJ e da FGV .

“‘Você é burro, você tem Q.I. menor que o meu.’ Se isso for entre pessoas da mesma raça, por exemplo, ou do mesmo gênero, que estejam querendo se ofender assim, vira uma questão de imoralidade e de incivilidade. O que me preocupa mais é quando vai para o lado de ‘sou melhor porque sou rico, porque sou branco; você está aí de favor”, diz.

Em 2018, alunos da PUC-Rio perderam o título de campeões após denúncias de terem cometido racismo nos jogos jurídicos em Petrópolis, na região serrana do estado. Uma torcedora da universidade jogou uma casca de banana em direção a um atleta negro da UCP, e outros estudantes da mesma universidade foram flagrados imitando macacos e ofendendo integrantes da Uerj.

“O Brasil é profundamente marcado por uma desigualdade social que separa ricos de pobres e que estabelece um lugar privilegiado para quem tem melhores condições financeiras. Ao chamar uma pessoa de ‘cotista’ [como no caso de novembro de 2024], evoca-se um ‘devolvam essa pessoa para o lugar dela’”, diz Corbo.

“É uma ideia de não pertencimento, de negação de igualdade. Os jovens estão com o ânimo à flor da pele [durante os jogos] e se valem de algo mais profundo, que são os obstáculos sociais, para afirmarem que só o grupo deles pertence àquele espaço [da universidade]. Isso gera traumas nos outros. E sabemos que os cotistas são, muitas vezes, negros. No caso brasileiro, é algo que conversa com o racismo.”

Ana Júlia Viegas, de 23 anos, estuda direito na Uerj e é a primeira pessoa da família a acessar o ensino superior. Nos jogos jurídicos de 2023, no fim da competição, ela ouviu de torcedores de uma universidade particular: “sua mãe trabalha para a minha”.

 “Sei que é uma ofensa para o grupo, mas levo para o pessoal. Afeta minha história. Sempre fui uma das únicas negras da sala na escola [particular], porque era bolsista. É como se as mesmas meninas que me excluíram no colégio estivessem de novo comigo na universidade, repetindo o ciclo”, diz.

Ela conta que se sente desconfortável nessas competições universitárias, mas que não deixará de participar delas. “Acho importante estar lá. Sei que são grupos específicos [que xingam], mas se você está ao lado deles e não os repreende, é conivente com o que está acontecendo”, afirma Ana Júlia. “Temos iniciativas no coletivo negro para jogos sem racismo e para a centralização de denúncias.”

Há soberba intelectual, dizem estudiosos

Além da questão financeira e da racial, há outro recurso de suposta superioridade para ser lançado pelas torcidas: a “inteligência”.

“Essa supremacia intelectual nada mais é do que um desejo muito infantil e imaturo de ser melhor do que o outro”, afirma Calegari.
Postada em redes sociais, uma música cantada por alunos de uma faculdade federal diz: “Chuta, cola, deixa a redação pra lá, sou semianalfabeto e faço Estácio de Sá”, em uma referência a uma instituição de ensino privada que cobra mensalidades mais baratas.

Julia Bevictori, de 29 anos, fez a graduação e a pós-graduação na Estácio. Ao ver um dos vídeos com esses versos, conta que ficou absurdada.

 “Para muitas pessoas, a faculdade particular é a única opção: tem horários compatíveis com trabalho, em locais de fácil acesso para chegar a tempo depois do expediente. A maioria é pobre com cota, com Fies, com Prouni. Como fazer um curso integral? Eu nem prestei o Enem, porque não tinha base para isso nem tempo para fazer cursinho”, diz.

“Escutar de adolescentes que toda a minha luta, de ter aula até 23h20, é coisa de ‘analfabeto’ é humilhante e ofensivo. E nunca fui pra jogos universitários: trabalhava durante o dia e estudava à noite.”

Como sair disso?
Katia Rubio explica como o esporte profissional também colabora para a troca de ofensas nos jogos universitários.

 “Os estádios são espaços em que palavrões e ataques são permitidos. Existe uma mensagem subliminar de que ali pode tudo. Mas é preciso ter fair play, ou seja, uma atitude respeitosa com o adversário. Não adianta que o discurso seja de esporte limpo, se a prática tem ficado cada vez mais contaminada pela falta de educação”, afirma.

Basta lembrar alguns exemplos recentes: cabeça de porco sendo jogada no campo, torcedores preparando emboscadas nas estradas para os adversários e brigas entre rivais terminando em morte.

Quando os jogadores ainda são amadores, sem preparo emocional para ouvir os ataques, “tudo incendeia”, diz o psicólogo esportivo Venucini. “São jovens que não aprenderam a lidar com as emoções de um ambiente hostil. Atletas profissionais são treinados para não se abalar”, explica.

Segundo os especialistas ouvidos pelo g1, para frear os constantes ataques, intolerâncias e confusões, é necessário:

acabar com a impunidade e garantir que os gestos terão consequências;
trabalhar a mediação de conflitos entre os torcedores, como o que foi feito na Alemanha, no futebol profissional;
proporcionar letramento racial principalmente nos cursos mais elitistas, como direito e medicina;
investir em ações afirmativas que tornem os ambientes acadêmicos cada vez mais plurais, tanto no corpo discente quanto no docente.

“Quanto mais cotistas e negros estiverem na universidade, maior será o contrangimento [de quem se opuser a eles]. É preciso que todos entendam que aquele lugar é, sim, de todos. E não adianta dizer que [os xingamentos] são liberdade de expressão do calor do momento. Nossa lei não abarca essa ideia”, afirma Wallace Corbo.

 

G1

Comentários