Quando abriu no sábado (15/12) as portas de sua loja em Copacabana — a 552ª no mundo, 9ª no Brasil e 2ª no Rio —, a Gucci deu mais uma demonstração de que não está exatamente interessada em seguir receitas de bolo. O.k., a butique de 284 metros quadrados está na fachada do edifício talvez mais icônico da cidade, o Copacabana Palace, passagem obrigatória para turistas gringos e de outros estados. Mas fazia tempo que Copacabana estava fora do radar das grifes de luxo, que dirá de uma internacional.
E daquela que mais cresce no mundo: foram 46% no ano passado, 36% no primeiro semestre deste ano e 35,1% apenas no terceiro quadrimestre, índices que não parecem se arrefecer nem diante de uma ameaça de guerra comercial. E a clientela millennial, pessoas entre 18 e 35 anos, adoram a Gucci; segundo pesquisa do UBS Group realizada neste ano com mais de três mil consumidores da China, da Europa e dos Estados Unidos, a marca italiana e a francesa Louis Vuitton despontam como as preferidas nessa faixa etária, que contribuiu com 85% do crescimento do mercado de luxo em 2017 e deve representar 45% dos gastos totais com produtos de alto padrão até 2025.
Mas o que faz da histórica grife, fundada em Florença em 1921 como uma loja de acessórios para equitação, um fenômeno de popularidade responsável por quase 60% do faturamento do conglomerado de luxo ao qual pertence, o Grupo Kering, número dois do mundo? A resposta está numa bem azeitada dupla, formada pelo CEO Marco Bizzarri e pelo diretor-criativo, o romano Alessandro Michele, de 46 anos. Assim que assumiu a marca, em janeiro de 2015, o primeiro demitiu a estilista que cuidava da grife havia 10 anos, a italiana Frida Giannini, e escalou para o posto o segundo, que atuava nos bastidores e nos acessórios. Promoveu, portanto, um talento da casa a um cargo desafiador. E o resultado não poderia ter sido mais explosivo.
Logo em seu primeiro desfile, apresentado às pressas em Milão em fevereiro de 2015, Michele deu o seu recado: praticamente todas as roupas eram agênero, podendo ser usadas por homens e mulheres. O clima trazia notas vintage, bebendo em fontes díspares como o Renascimento italiano e a disco music dos anos 1970. Desde então, coleção após coleção, o estilista também vem investindo na diversidade. Em suas campanhas e passarelas, esqueça qualquer padrão — há espaço para narigudos, albinos, muitos negros, trans, ruivos, magros e gordos. Idade tampouco é uma questão; as atrizes Vanessa Redgrave e Faye Dunaway, de 81 anos e 77, estrelam recentes publicidades da marca. O elenco é complexo, mas o recado é simples: todo o mundo está convidado a se vestir de Gucci.
— O Michele é um sinal dos tempos, um mix de tudo, que faz do velho o novo, que se apropria e transforma. Não existe um estilo apenas, ou uma cor, uma estampa, uma década. Tudo vira referência, tudo serve para todos, dos 8 aos 80, do branquelo ao negão, do nanico ao pirulão, seja homem, mulher, LGBTQI — resume a jornalista Lilian Pacce, que acompanha o estilista desde sua estreia. — Ele é de uma verdade intensa, apoiado pela coragem imensa do CEO que o deixou livre em seu processo criativo disruptivo, estabelecendo um novo paradigma na moda contemporânea.
A coleção que inaugura a loja de Copacabana é a de resort 2019, desfilada em maio na cidade de Arles, na França. A passarela foi montada num cemitério, a necrópole de Alyscamps, entre tumbas de cidadãos do antigo Império Romano. Na apresentação da coleção anterior, a de inverno 2018/19, o cenário evocava um centro cirúrgico, onde as modelos desfilavam segurando, no lugar das bolsas, esculturas que reproduziam... suas próprias cabeças. A principal referência era o ensaio “Manifesto Ciborgue”, escrito pela pensadora americana Donna Haraway nos anos 1980, que misturava o feminismo ao conceito de trans-humanidade.
— Embora faça também roupas que apelam para os clientes millennials, Michele é um criador muito intelectualizado, que contempla os valores da contemporaneidade. Foi, por exemplo, um dos primeiros a banir o uso de peles e a produzir os sneakers em larga escala numa grife de luxo — sublinha a jornalista Alexandra Farah. — Ele consegue atingir desde o mais fashionista que só quer usar logos sem saber meio por quê até a cliente mais sofisticada, como no desfile dos ciborgues. Trata-se de um estilista que junta os temas mais pop às questões mais profundas, o street ao intelecto, encarnando uma espécie de Leonardo Da Vinci da moda. Inclusive seu próprio estilo se parece com o de Leonardo.
A criatividade de Michele vem ao encontro dos desejos da geração que se recuperou do trauma da crise de 2008, jovens que mandaram o minimalismo às favas e criam suas listas de sonhos de consumo à base das múltiplas e exuberantes referências das redes sociais. Pensando nelas, a Gucci veicula, a cada temporada, vídeos inacreditáveis assinados pelo cineasta e fotógrafo britânico Glenn Luchford, que já usou locações como discos voadores, a Arca de Noé e uma singela discoteca, só com frequentadores negros. Aliás, os rappers americanos estão entre os principais embaixadores da marca, nos palcos e na vida real.
— Um dos mais fortes exemplos foi a colaboração da Gucci com o alfaiate Dapper Dan, um ícone da cultura negra nova-iorquina que, nos anos 1980, fazia sucesso entre os rappers misturando a estética da rua com elementos das grifes de luxo. Na época, ele foi processado pela Gucci e teve que fechar seu ateliê — lembra Alexandra Farah. — Pois, no ano passado, o Michele convidou o Dapper a fazer uma collab e o ajudou a reabrir seu ateliê no Harlem. Ou seja, o marketing da marca não é mais aquele de modinha, de venda de ocasião, mas algo pensado a longo prazo e com substância. Não pode haver nada mais cool.
Voltando ao Rio, a nova loja traz, pela primeira vez à cidade, a linha de roupas femininas e os objetos de decoração. Construída com materiais brasileiros, como o piso de madeira sucupira, tem seu lay-out inspirado na Riviera Francesa, tropicalizando-o para Copacabana, como, aliás, é o próprio hotel onde a butique está instalada. Os móveis e as tapeçarias com fibras naturais dão ares de uma praia interna, e o chão do terraço traz um mosaico feito com pedras portuguesas p&B, como o famoso calçadão do bairro.
— A Gucci é uma grife bem sucedida no processo que batizei, apropriando-me da biomimética e de Charles Darwin, de “seleção natural da moda”. Nele, fortalecem-se, destacam-se e permanecem no jogo as marcas que de forma mais inteligente se adaptam às mudanças — diz Paula Accioli, coordenadora do curso de Gestão Estratégica em Negócios de Moda, da FGV. — Com total entendimento do contexto no qual vivemos, ela prova que luxo e tradição combinam perfeitamente com modernidade. A grife, que já era fenômeno da moda no século passado, se confirma assim como fenômeno da moda também no século XXI. (ELA)