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Brasileiros descobrem artefatos humanos mais antigos fora da África
Ciência e Saúde
Publicado em 10/07/2019

A descoberta adianta em 500 mil anos a migração de nossos ancestrais para fora do continente – o que pode reescrever a história da arqueologia.

arqueologos

O sítio arqueológico no vale do rio Zarqa, próximo à capital da Jordânia, Amã. (Fabio Parenti/Reprodução)

Uma expedição realizada no norte da Jordânia entre 2013 e 2015 por uma equipe de arqueólogos ítalo-brasileira encontrou artefatos de pedra lascada de 2,4 milhões de anos – provavelmente produzidos por hominídeos pertencentes ao gênero Homo.

Isso significa que os primeiros ancestrais humanos a saírem da África rumo ao Oriente Médio começaram essa jornada no mínimo 500 mil anos antes da data tida como consenso pela comunidade científica até então.

A descoberta foi anunciada em uma coletiva de imprensa no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) na última quinta-feira (4). O artigo científico que detalha as conclusões do grupo será publicado sábado (6) na revista Quaternary Science Reviews.

“Nós descobrimos ao todo 450 peças, das quais 100 são provenientes dos níveis mais antigos”, explicou à SUPER Astolfo Araújo – pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. “Também analisamos artefatos provenientes de escavações de colegas que trabalharam antes de nós, nos anos 1980 e 1990 – foram, ao todo, 1,7 mil peças.”

Também participaram da pesquisa o paleoantropólogo Walter Neves, da USP,  Giancarlo Scardia, da Unesp de Rio Claro, e Fabio Parenti, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – que explora o vale do rio Zarqa, próximo a Amã, capital da Jordânia, desde a década de 1990.

Para entender por que esses artefatos – os mais antigos já encontrados fora da África – podem virar de ponta cabeça a história da humanidade, primeiro é preciso entender essa história da maneira como ela é contada hoje.

Na biologia, toda espécie é batizada com um nome científico duplo. Quando duas espécies são muito próximas, elas pertencem ao mesmo gênero, e, assim, têm o primeiro nome igual. É o caso do lobo (Canis lupus) e do coiote (Canis latrans).

Hoje, não há nenhum animal aparentado o suficiente com o ser humano para carregar o nome Homo – mas 2 milhões de anos atrás, a situação era bem mais confusa.

O pioneiro de nossa linhagem foi o Homo habilis – que viveu na África entre 2,4 a 1,4 milhões de anos atrás. Ele ainda tinha uma aparência próxima a de um símio, um cérebro 30% maior que o de um chimpanzé e no máximo 1,4 metro de altura. Ele foi o primeiro a fabricar ferramentas. Até onde se sabe, a partir dele se ramificaram espécies como o Homo naledi (que não interessa para nós) e o Homo erectus (que interessa bastante para nós).

O erectus, que surgiu há 1,9 milhões de anos e compartilhou a Terra com o sapiens até bem recentemente, foi o primeiro a sair da África e explorar os demais continentes. Ele já era um bípede de pernas desenvolvidas, e tinha um cérebro com dois terços do volume do de um humano moderno.

Os erectus que se estabeleceram na Ásia e na Europa dariam origem aos homens de Neandertal e de Denisova. Uma parcela dos erectus que ficaram na África, por sua vez, deu origem a nós. No intervalo entre erectus e sapiens é provável que tenha existido uma terceira espécie, o heidelbergensis. Mas não vamos complicar a árvore genealógica sem necessidade.

A moral da história é: houve duas ondas migratórias para fora da África. É por isso que, quando o ser humano moderno (Homo sapiens) deixou seu berço, há meros 70 mil anos, ele encontrou a Ásia já habitada por Neandertais e Denisovanos. Esses humanos diferentões descendiam de erectus que haviam saído do continente muito antes, há 1,9 milhão de anos.

Agora, a novidade

O que os artefatos jordanianos revelam é que, muito antes do Homo erectus sonhar em existir, seu ancestral direto, o Homo habilis, já havia saído do continente africano e ocupado o Oriente Médio.

Não há muita dúvida de que as pedras lascadas encontradas pela equipe ítalo-brasileira foram moldadas a mão, e não por fenômenos naturais – além disso, os três métodos de datação empregados apontam para uma época em que o habilis era o hominídeo africano mais sofisticado do ponto de vista tecnológico, e o único representante do gênero Homo. Ou seja: ele é o único candidato possível.

Essa migração precoce da humanidade ajudaria a explicar muitas descobertas recentes que não se encaixam na história tradicional do Homo erectus. Por exemplo: já foram encontradas, na China, ferramentas de 2,1 milhões de anos – 200 mil anos mais antigas do que a data em que o erectus surgiu e saiu da África. Como elas foram parar lá? (Neves reforça que a datação dessas peças não é confiável, pois foi feita por só um método.)

Outro problema: Na Ilha de Flores, próxima à Indonésia, foi encontrada uma espécie o gênero Homo com um metro de altura e cérebro menor que o de um chimpanzé. Sabemos que espécies que colonizam ilhas sofrem uma pressão evolutiva para diminuir de tamanho, mas isso não responde à principal pergunta: de quem esse Homo pigmeu descende? Do erectus ou do próprio sapiens, mais recentemente?

Por fim: um conjunto de cinco crânios (originalmente chamados de ergaster, mas hoje atribuídos ao erectus) foram encontrados em um sítio arqueológico na Geórgia, ao sul da Rússia. Apesar de terem vivido ao mesmo tempo –  há 1,8 milhões de anos, uma data que condiz com a saída da África há 1,9 milhões de anos –, eles tinham uma enorme variabilidade anatômica entre si, que até hoje não foi explicada satisfatoriamente. Alguns desses crânios tinham um volume muito pequeno para pertencer ao erectus – eram mais parecidos com o do habilis.  

O que Neves e seus colegas propõem é que a presença do habilis na Ásia põe um ponto final nessas inconsistências. Por exemplo: os crânios encontrados na Geórgia não seriam erectus, e sim habilis que estavam em pleno processo de transição para erectus. Desta maneira, o erectus não teria surgido na África, e sim na Ásia. Após atingir a forma que conhecemos hoje, ele teria retornado à África para dar origem a nós, Homo sapiens. “Com esses dados, a gente resolve um dos maiores pepinos da paleoantropologia nos últimos 20 anos”, diz o pesquisador.

De quebra, o habilis poderia ser o autor das ferramentas de 2,1 milhões de anos encontradas na China (uma solução a que Neves se referiu carinhosamente como “resolver o problema dos outros”)  e também o ancestral direto dos pigmeus encontrados na Ilha de Flores.

A questão é saber como essa proposta será recebida pelo resto da comunidade científica. A arqueologia é um campo disputado, e muitas vezes pesquisadores de uma determinada linha são reticentes em aceitar as hipóteses dos pesquisadores de outra linha.

“Pode demorar décadas, mas se uma pesquisa é bem embasada, um dia ela é reconhecida”, diz Astolfo Araújo. “Os grupos de interesse e pressão mudam, as pessoas morrem ou se aposentam, e novas gerações acabam olhando para os dados de maneira diferente. Pessoalmente, não estou muito preocupado se vão aceitar nosso dados rapidamente. Agora que está publicado, não tem volta: as pessoas vão ter que pensar no assunto.” (SuperInteressante)

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