Em 1913, com apenas 37 anos, foi nomeado bispo de Zamora. Logo em sua primeira carta pastoral para a diocese, citou o papel dos cientistas Isaac Newton (1642-1726) e André-Marie Ampère (1775-1836). Não pela grandiosidade de suas descobertas mas, sim, atribuindo a eles a repulsão da humanidade para com Deus.
"O elemento do pecado enquanto causa da epidemia ainda era utilizado como instrumento divino contra a sociedade", contextualiza Missiato. "Trata-se de uma tradição de longa data do catolicismo ibérico, que remonta desde os períodos medievais."
Ele determinou que as igrejas não só da capital Zamora como de toda a província mantivessem suas portas abertas, suas atividades. E que incrementassem as devoções, com realização de novenas e procissões. Como pontua o historiador Missiato, "não se trata de mera coincidência" a mortalidade superior que ocorreu em seguida.
Quando o Brasil vive um momento de descontrole da disseminação de Covid-19 e há uma contenda judicial pela abertura ou não dos templos religiosos, é inevitável comparar ambos os episódios históricos.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes decidiu na segunda-feira (05/04) manter um veto à realização de cultos religiosos no Estado de São Paulo, determinada pelo governador João Doria (PSDB) com objetivo de conter o contágio do coronavírus.
A decisão contraria liminar concedida pelo ministro da Corte Kassio Nunes Marques, que no sábado (03/04) liberou a realização de celebrações religiosas em todo o país, desde que cumpridas medidas de redução do contágio como uso de máscaras e limitação do público a 25% da capacidade do local.
Devido ao choque entre as duas decisões, a questão deve ser levada para julgamento no plenário do STF na quarta-feira (07/04). A tendência é que a liberação dos cultos autorizada por Marques seja derrubada.
"Em ambos os acontecimentos, a defesa pela abertura de cultos ocorreu nas fases mais expansivas e mortais das epidemias", pontua Missiato.
"No entanto, em Zamora, além dos cultos, ocorreram procissões com altos índices de aglomerações, cujo objetivo era enfrentar o vírus através da oração, através do culto a São Roque, considerado um dos santos protetores contra doenças desse tipo. No Brasil contemporâneo, diante do quadro de informações e tecnologias desenvolvidas, os cultos religiosos, em sua maioria, procuram adotar medidas de distanciamento baseadas em métodos científicos, apesar das críticas feitas por diversos órgãos sanitários."
Doutora em História das Ciências da Saúde e autora do livro 'A Gripe Espanhola na Bahia', a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza lembra que um episódio semelhante ocorreu em Salvador quando o Brasil vivia o pânico causado pela gripe de 1918.
Na ocasião, os ritos católicos não foram proibidos pela Diretoria Geral de Saúde Pública da Bahia, mesmo que isso fosse contrário às medidas profiláticas recomendadas. A motivação foi que esses eventos serviam para que os fiéis suplicassem a misericórdia divina.
Segundo pesquisas da historiadora, as romarias de sexta-feira à Igreja do Senhor do Bonfim, registraram público maior do que o normal nesse período.
A devoção ao Senhor do Bonfim também tinha relação com a cura. A imagem foi entronizada no templo baiano em 1745, trazida pelo capitão português Theodozio Rodrigues de Faria, um grande devoto do Senhor do Bonfim. Pela tradição, rezar para ele garantiria ao povo baiano a proteção contra a fome, a seca e, sim, a peste.
No auge da gripe espanhola, decidiram que a imagem não deveria ficar no altar-mor. Colocaram no corpo da nave da igreja para que, assim, ficasse mais próxima dos fiéis. E os fiéis beijavam os pés da imagem sacra, sem receio de, assim, se contaminarem.
"Na época da gripe [espanhola], era desestimulado que as pessoas ficassem em lugares fechados, aglomeradas, por causa do [risco do] contágio. Mas aqui na Bahia elas desrespeitaram isso", relata Souza. "Fizeram procissões, foram para a igreja beijar pé de santo. Imagine: beijar pé de santo em meio a [disseminação de] uma doença contagiosa. As pessoas se sentiam protegidas no espaço do sagrado."
Ainda segundo levantamento da historiadora, a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, também de Salvador, fez o mesmo com a imagem de São Roque.
"A fé serve de conforto espiritual, esperança de cura do corpo físico, alívio do medo e da angústia", comenta Souza. "Nesses períodos, os sacerdotes exploram um pouco isso, também [com o discurso de] que a epidemia é resultado do pecado dos homens, que tem de haver um sacrifício para expiar a culpa, para ser liberado do mal. Essas coisas ocorrem durante crises epidêmicas."
"Pessoas fragilizadas recorrem a uma força superior para enfrentar o medo da morte, a angústia do desconhecido, do que está fora do controle humano", analisa a historiadora. "As epidemias costumam fugir do controle. Então é uma espécie de mecanismo de defesa buscar o auxílio de uma força superior, de uma força espiritual."
Missiato compartilha ponto de vista semelhante.
"Em tempos de grave crise social, política e sanitária, é comum visualizarmos algumas situações em que o nome da fé é utilizado como forma de manifestação social", contextualiza. "Ressaltamos, contudo, a pluralidade de ações das instituições religiosas, tendo em vista os diferentes graus de diálogo e respeito frente às medidas estabelecidas pelos órgãos de saúde."
"No caso de Zamora, a ação radical e, provavelmente, suicida, de Álvaro y Ballano, não foi seguida por todos os religiosos, tendo em vista que muitos espaços religiosos cederam espaço ao tratamento da epidemia", ressalta. "No Brasil, diante de um quadro político extremamente polarizador, as diversas dissonâncias influenciaram no atual quadro caótico na prevenção e tratamento contra a covid. Tal polarização acaba por influir diretamente nos diferentes posicionamentos dos vários centros religiosos brasileiros."