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Depois da vacinação em massa, Serrana, ‘capital da vacina’ do Brasil, já faz planos para retomar festas, abraços e negócios
Ciência e Saúde
Publicado em 12/05/2021

Na bucólica Praça da Matriz de Serrana, o pipoqueiro Geniovar Vieira dos Santos, de 80 anos, encosta a bicicleta em um banco de concreto e senta para descansar. Há meses ele não se sentia seguro para passar um tempo na praça que o consagrou, como gosta de dizer, “o pipoqueiro profissional da cidade”. Mas ver seu pequeno município imunizado em massa contra o vírus que assusta o mundo há mais de um ano reacendeu seus planos de voltar a aceitar convites para fazer pipoca nas festas de aniversário. “Não sei se vou voltar a trabalhar aqui todo dia, estou cansado. Mas tenho saudade de fazer pipoca aqui na praça e nas festas da cidade, mesmo que seja de vez em quando”, diz.

Vieira é sergipano, mas vive há mais de quatro décadas na cidade de quase 46.000 habitantes do interior paulista, onde criou seus 11 filhos. E no início de abril foi completamente vacinado contra o coronavírus, assim como quase todos os seus vizinhos, em um projeto piloto do Instituto Butantan que procura entender qual a capacidade da vacina Coronavac, a mais aplicada no país, para minimizar a pandemia em um cenário real. “Serrana agora está famosa. Foi uma beleza chegar essa vacina aqui”, comemora, enquanto acomoda um chapéu sobre a cabeça.

Por muitos anos, ele viu o lugar onde mora acostumar-se ao rótulo de cidade-dormitório. Todas as manhãs, ao menos um terço da população deixa as estreitas ruas asfaltadas do município e percorre cerca de 20 quilômetros de estrada para trabalhar na vizinha Ribeirão Preto, já que as oportunidades de emprego na própria cidade não vão muito além de uma usina de açúcar, do comércio local e da plantação de cana. Há quem diga por lá que a quase desconhecida Serrana mal sentia-se parte do mapa do Brasil até ganhar os olhos do mundo pelo seu mais recente atributo: o de cidade da ciência. E com ele espera atrair empresas para mudar de perfil. Serrana já não quer mais ser vista como “cidade-dormitório” e espera surfar na onda de “cidade imunizada” para desenvolver-se economicamente. “É o melhor lugar que eu achei e tão falando que com essa vacina a cidade vai poder crescer”, celebra o pipoqueiro.

Por causa do projeto S, do Instituto Butantan, a cidade já vive um feito que para a maioria dos municípios brasileiros ainda é um sonho: tem 97,7% de sua população adulta imunizada contra o coronavírus. Assim, se converteu em uma ilha de esperança de dias melhores, em um país afogado em uma crise sanitária e que ainda patina para imunizar sua população —há cidades, por exemplo, em que não há sequer a segunda dose para pessoas que já começaram a ser vacinadas.

 Nos Estados Unidos, onde mais de 100 milhões de pessoas já foram vacinadas, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) já permite a circulação ao ar livre sem máscaras. Israel, que já imunizou mais da metade de sua população, também dá os primeiros passos na volta à normalidade do período anterior à pandemia. Em Serrana, aos poucos, o comerciante Nagib Almeida de Issa, de 27 anos, começa a ver retornar o movimento na salgaderia de paredes vermelhas que mantém em frente ao Hospital Estadual de Serrana. No começo da pandemia, ele viu a clientela praticamente desaparecer. “As pessoas tinham medo até de passar na rua do hospital e o movimento caiu muito. Tivemos que brigar muito, colocar delivery e fazer empréstimos para conseguir manter os funcionários”, conta, do balcão onde acabou de atender quatro pessoas.

“As coisas agora vão melhorar, mal vejo a hora de ver a casa cheia de novo. Serrana vai se recuperar mais rápido, e o nosso comércio também, que depende da circulação de pessoas”, acredita. Nas ruas, alguns caminham sem máscara, embora a determinação ainda seja de manter os cuidados mesmo com a vacinação. Por enquanto, a cidade mantém medidas restritivas como funcionamento do comércio em horário determinado com ocupação reduzida, mas espera ser pioneira na reabertura econômica quando os resultados da pesquisa da vacinação começarem a sair, em maio. “Nós fazemos parte da pesquisa e vamos ajudar Serrana a recuperar a economia mais rápido. Há empresas querendo vir para cá. Se tivermos mais empregos, as pessoas abastecem aqui, comem aqui e a cidade cresce”, acredita Almeida.

Somente em janeiro deste ano, já prestes a ser colocado em marcha, o projeto S foi levado à seara pública. A notícia ganhou o país e derrubou até o site de imobiliárias locais, que recebiam dezenas de mensagens de pessoas de vários Estados interessadas em alugar um imóvel para tentar se vacinar. “Nunca tinha visto um boom desses em 29 anos trabalhando aqui”, conta Manoel Messias de Oliveira, que tem uma imobiliária no centro da cidade. “Mais de 100 pessoas além da demanda habitual nos procuraram. Tivemos uma semana de euforia. Um cliente de Recife chegou a dizer que compraria uma casa para conseguir se vacinar, mas a gente procurou a Secretaria da Saúde, e eles disseram que o mapeamento já havia sido feito”, explica Messias. Ainda no ano passado, quando o projeto era secreto, um censo cadastrou a população, que foi dividida em quatro grupos identificados por cores conforme a ordem para a imunização. Meses depois, escolas públicas viraram postos temporários de vacinação. Na principal via de acesso ao município, uma placa projeta Serrana como “a cidade referência no combate à covid-19″.

“O crescimento econômico agora é minha expectativa. Tenho percebido uma busca maior por estabelecimentos comerciais para trazer franquias, mas tudo ainda está sendo negociado. Serrana deixou de ser a cidade do boia-fria e hoje é a cidade da ciência. Mas para a gente ter mesmo um conforto, o resto do país deveria estar vacinado”, afirma Messias. A premissa repetida por muitos moradores é a mesma do prefeito Leonardo Capiteli (MDB), que tenta atrair empresas aproveitando a promessa de uma retomada econômica mais rápida. Por enquanto, nenhum negócio foi fechado. “Queremos aproveitar essa potencialidade por ser uma das cidades mais seguras neste momento”, discursa o prefeito.

“A vacina deu uma esperança, mas acho que vai demorar para as coisas voltarem ao normal”, diz, mais cético, Pedro Henrique da Silva, de 20 anos, que perdeu o emprego em uma loja comercial no começo da crise e ainda não conseguiu outro trabalho. Depois de meses em isolamento social, a vacina o fez sentir-se mais seguro para encontrar pessoalmente uma amiga, de máscara e seguindo cuidados preventivos. “Toda a minha família é de Alagoas e lá ainda estão esperando. Aqui a gente já se sente mais protegido para fazer essas coisas”, afirma, enquanto a aguarda na Praça da Matriz. Perto dali, um grupo de idosos conversa, sentado nos bancos de concreto.

Ao lado da esposa e da nora, o pipoqueiro Vieira conta que, dos seus 11 filhos (todos adultos) apenas um não tomou as duas doses da Coronavac. “Só tenho um filho que não quis tomar. Já falei pra ele: ou vá tomar ou dê um jeito na vida. Já pensou levar doença para dentro de casa? Ele diz que é muito ocupado. Falei que trabalho não empata de tomar vacina não. Tem que tomar, rapaz, é de graça!”, defende. “Eu achei bom demais. Parece que fiquei foi mais novo com essa injeção. Pode tomar mais uma?”, brinca. A nora dele, Elaine Cristina de Oliveira, de 45 anos, diz que precisou vencer o receio deixado por um turbilhão de mensagens recebidas no Whatsapp. Preocupou-se até mesmo com o mito de que poderia “virar jacaré”, mas decidiu participar da pesquisa científica porque o medo da doença foi maior. A leve picada de agulha no braço, conta, retirou-lhe um peso das costas, como um efeito psicológico por sentir-se mais segura. “Eu me sinto uma privilegiada”, orgulha-se. “Quando eu viajava, dizia que era de Ribeirão Preto porque ninguém conhecia Serrana. Agora está bem falada a cidade. Tô achando tão bom poder falar que moro na cidade da vacina.”

Evangélica, Elaine conta que o maior presente da vacinação em massa foi permitir que pudesse voltar a frequentar a igreja depois de meses sem participar dos cultos. Agora, ela espera que em breve possa abraçar os amigos da igreja e os familiares. “No Natal do ano passado, eu viajei para o Mato Grosso, mas fiquei afastada e não pude reunir os parentes de lá. Acho que neste Natal vamos poder nos reunir aqui. Tenho muita saudade de abraçar as pessoas. Antes desse coronavírus, a gente era feliz e não sabia.” Durante a pandemia, ela continuou ajudando os sogros idosos e a mãe, a quem visita uma vez por semana para auxiliá-los com as demandas domésticas, mas sempre com máscaras e mantendo o distanciamento. “Acho que logo vamos poder voltar a fazer festa. Reunir todos os netos e bisnetos porque a família é muito grande”, sonha.

União de todos para convencer sobre a vacina
Serrana sentiu com força a chegada da pandemia em abril do ano passado, quando teve o primeiro surto em uma casa de idosos. As autoridades sanitárias locais realizaram um inquérito sorológico para entender o quanto o vírus já havia avançado e se depararam com uma taxa de prevalência bastante alta: 5% da população testada aleatoriamente já havia sido infectada enquanto o percentual no Estado era de 2%. A má notícia, porém, abriu uma porta para a ciência: uma cidade pequena com alta incidência de casos, capacidade de pesquisa e suporte científico por sediar um hospital estadual era o laboratório perfeito para a pesquisa secreta almejada pelo Instituto Butantan.

Um censo de saúde foi realizado ainda no ano passado para mensurar o tamanho da “população vacinável”. Cerca de 28.000 serranenses tinham mais de 18 anos e eventuais doenças crônicas sob controle e estavam, portanto, aptos a participar da pesquisa. Nos bastidores, a gestão municipal fazia reuniões com comerciantes e lideranças religiosas, potenciais formadores de opinião na cidade. Sem citar o secreto Projeto S, pedia ajuda para convencer a população sobre os benefícios de receber as vacinas quando estivessem disponíveis. Só assim seria possível retornar à “normalidade”. O resultado foi uma alta adesão ao estudo, com 27.150 pessoas do público-alvo vacinadas, o que representa 64% de toda a população da cidade, já que crianças, gestantes e lactantes não foram imunizadas no projeto porque ainda não há estudos da vacina voltados a este público.

“Foi o destino. Essa vacina tinha que chegar até mim”
Mas em março deste ano a pandemia ganhou força em todo o país e impôs ao Estado de São Paulo medidas mais restritivas. Foi o pior mês para Serrana desde o início da crise sanitária: março concentrou um quinto das 84 mortes registradas pela cidade durante toda a pandemia. Na UPA, pacientes enfileiravam-se por um leito de UTI. A vacinação em massa pelo projeto S havia começado em janeiro, com doses cedidas pela Sinovac para o estudo, mas só neste mês de abril o esquema vacinal foi concluído no público-alvo. É preciso completar as duas doses para alcançar a eficácia apontada pelos estudos clínicos, e a resposta imunológica pode demorar semanas para ser desenvolvida.

“Eu fiquei doente pouco depois da primeira dose, mas acho que não precisei internar graças à vacina”, diz o mototaxista Roberto da Silva Porto, de 48 anos. Ele mudou-se para Serrana há oito meses, após a esposa perder o emprego em São Paulo. Tentou trabalhar de forma independente na distribuição de gás como fazia na capital paulista, mas não deu certo, nem o trabalho nem o casamento. “Virei mototaxista porque aqui na cidade não tem muito com o que trabalhar.” Mesmo assim, decidiu continuar ali e ficar próximo dos três filhos. Com a demanda baixa por passageiros, ele tem se dedicado principalmente a fazer entregas de delivery. “Foi o destino, né? Essa vacina tinha que chegar até mim. Agora eu me sinto mais confiante e seguro porque trabalho com o público”, comemora.

Embora ainda não haja informações concretas sobre os efeitos da imunização em larga escada na cidade, profissionais de saúde e gestores relatam melhora em alguns indicadores. O Hospital Estadual de Serrana ―referência em covid-19 para 26 cidades da região― tem cada vez menos pacientes do município que o sedia. Aos poucos, outras unidades como a UPA e os postos de saúde começam a retomar procedimentos que haviam sido suspensos temporariamente diante da alta pressão da pandemia. Nos últimos 20 dias, apenas um serranense foi intubado na cidade pela covid-19, segundo a Prefeitura.

“No hospital, aparentemente temos menos gente de Serrana precisando internar por covid-19. Mas ainda estamos levantando dados gerais, analisando se houve internação em outras cidades, para ver os efeitos da vacinação”, explica Natasha Nicos, infectologista do Hospital Estadual de Serrana e uma das pesquisadoras do Projeto S. A média de novos casos diários caiu e hoje representa um quarto do que era notificado há um mês. Em todo o Estado de São Paulo, as novas infecções vem caindo, mas de forma mais lenta. Há um mês, a média de novos casos semanais era de 15.762 enquanto na última semana foi de 12.573. A demanda de pacientes com sintomas gripais por exames nos postos de coleta de Serrana saiu de 150 buscas diárias para pouco mais de 30 em um mês, segundo a Prefeitura. “Em abril zeramos a fila de UTI por covid-19 e o fluxo de pacientes graves na UPA também diminuiu bastante”, afirma a chefe da Vigilância Epidemiológica da cidade, Glenda Renata de Moraes. “Mas ainda é cedo para relacionar isso à vacinação”.

No centro de saúde da cidade, Andrei Wesley Monteiro, de 26 anos, esperava para tomar a segunda dose na sexta-feira, 23 de abril. Era o último dia para quem atrasou o reforço vacinal pelo Projeto S. “Me vacinei por pura sorte”, ele diz, animado. É que Monteiro morava na cidade de Araçatuba, quando foi transferido para trabalhar na Usina da Pedra de Serrana há cerca de um ano. Mudou-se para a cidade com a esposa, a mãe e a irmã. Toda a família agora está imunizada. “Somos privilegiados”, comemora, erguendo o cartão de vacinação.

“Serrana foi descoberta”
A 500 metros dali, a auxiliar de serviços gerais Marcelina Gonçalves, de 38 anos, espera um ônibus. “Antes a gente via os vizinhos sendo internados com covid-19, isso diminuiu muito”, conta, enquanto saca da bolsa o seu cartão de vacinação, que virou um documento importante para ela assim como o CPF ou a identidade. Serrana estuda, inclusive, adotar uma espécie de “passaporte da imunidade”, como já se discute na Europa. Na porta de uma unidade de saúde, a professora Marileide Neves dos Santos, de 34 anos, diz que ainda não se sente segura para voltar a dar aulas presenciais em maio, mas espera que os resultados da pesquisa tragam tranquilidade. “Aqui na cidade a gente estava muito ansioso porque o Brasil inteiro espera essa vacina, né? É um privilégio muito grande pra gente. Serrana foi descoberta pelo país”, diz.

Na última semana, o Ministério da Saúde anunciou que apoiará uma pesquisa em outra cidade paulista. Botucatu também terá vacinação em massa com a vacina da AstraZeneca e um programa de sequenciamento genético para avaliar a efetividade do imunizante frente às novas variantes do coronavírus.

Mas em Serrana, Marileide agora sonha com o dia em que poderá voltar a dançar forró. “Acho que daqui para o final de maio vamos começar a voltar ao normal. A primeira coisa que eu quero fazer é dançar. A gente está sentindo falta das festas”, planeja. Por enquanto, sentir-se um pouco mais protegido ante o luto que assola o país pelas mais de 400.000 vidas roubadas pela covid-19 é o alento e a esperança da cidade. O pipoqueiro Vieira, encostado na sua bicicleta na Praça da Matriz, resume seu sentimento: “Não tenho medo de morrer porque ninguém nasceu pra semente, mas se Deus me der mais vida pra frente eu acho bom. Então fui lá tomar a vacina, né? Tô em paz agora”.

Reportagem El País

 

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