Um grupo de alunos e professores da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto formalizou uma nota à direção da universidade em repúdio a práticas abusivas por parte de veteranos a calouros da instituição.
Dentre os trotes citados, há momentos de coerção dos iniciantes a exposição sexual, passíveis de crime a quem comete ou se omite a denunciar, segundo o Código Civil. O documento foi produzido como parte de uma série de debates que acontecem na instituição, dentre eles uma assembleia que mobiliza os 500 alunos de Direito nesta terça-feira (10), desde as 8h.
A nota, com mais de 100 assinaturas inclusive de centros acadêmicos e de outras instituições de ensino, cita que na chamada “Festa da Coroação” calouras foram impedidas de irem embora por recusarem o trote “Bixete pega o disquete”, que obriga universitárias a desfilarem diante dos alunos e se abaixarem “a fim de exibir seus corpos para diversão dos presentes”.
Outra prática repudiada é da submissão dos calouros a juramentos em público, em que os homens prometem abrir mão de relações sexuais com alunas da universidade e as calouras, além de se autodenominarem “vagabundas”, garantem exclusividade sexual aos veteranos do curso.
Nenhum das práticas citadas é exclusiva da USP, afirma a professora do curso de Direito da universidade, Fabiana Fezeri. Ela argumenta que a iniciativa dos alunos visa evitar futura agressão física – não constatada, segundo ela – decorrente da “violência simbólica” observada nos trotes descritos.
“O vocabulário é ofensivo e a faculdade acolheu o pedido de ampliar o debate”, diz, citando que há anos a instituição se preocupa em discutir práticas para recepção de calouros.
Crime
Segundo o advogado Daniel Rondi, diretor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Ribeirão, todo tipo de humilhação é passível de ser responsabilizada por meio do Código Civil, incluindo os casos de omissão.
Abusos só podem ser levados à Justiça se as próprias vítimas protocolarem denúncias, ressalta o advogado. “Cabe ao ofendido e ao Ministério Público tomarem providências criminais”, explica.
Procurada pelo G1, a assessoria de imprensa da USP informou que não teve acesso ao documento redigido pelos estudantes. Uma coletiva de imprensa será realizada na tarde desta terça-feira em Ribeirão.
Confira a nota de repúdio na íntegra:
NOTA DE REPÚDIO AOS ATOS OCORRIDOS NA FDRP-USP
Nós, alunos da Universidade de São Paulo abaixo subscritos, e demais entidades e autoridades, pela presente manifestamos repúdio aos atos discriminatórios e violentos que têm ocorrido na esteira dos rituais e festas de recepção aos novos alunos da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP).
Apesar da alegação de que se submeter ao trote é opcional, situações como a ocorrida na última Festa da Coroação (evento no qual os ingressantes recebem o objeto distintivo do curso - uma coroa de louros - que devem carregar na cabeça até o dia 13 de maio, data da Festa da Libertação) demonstram o contrário. Nessa festa, um grupo de calouras se viu impedido de sair de um local da casa onde a festa se realizou, porque se negou a participar do rito denominado Bixete pega o disquete, onde desfilariam diante de todos os alunos da Faculdade, abaixando-se no final do percurso a fim de exibir seus corpos para diversão dos presentes.
Em uma das passagens do trote que se convencionou chamar de juramento, os calouros homens prometem abdicar de seus pênis, estando teoricamente impedidos de se relacionar com as alunas do curso. As mulheres, por sua vez, iniciam seu juramento se auto-proclamando: “Eu, bixete vagabunda...”, e seguem, prometendo que permanecerão belas e exclusivas aos veteranos. Esse discurso, claramente, corrobora a visão patriarcal da mulher na sociedade ao tratá-las como seres desprovidos de autonomia, transformando-as em objetos sexuais, e impondo o dever de se manterem submissas ao poder masculino representado, na situação descrita, pelo veterano.
A obrigatoriedade do uso da coroa tem gerado pressões nos corredores da Faculdade. Se por um lado os órgãos de representação dos discentes reiteram que a submissão ao trote e a suas regras é do arbítrio do calouro, também há alunos que costumeiramente intimidam aqueles que não utilizam o objeto distintivo. Alguns deles, ainda que sendo membros da Associação Atlética Acadêmica e do Centro Acadêmico da Faculdade, acabam por agir em desconformidade com o que suas entidades prescrevem e, mesmo assim, são vistos pela coletividade como seus representantes legítimos, inclusive sendo imbuídos de certa autoridade, especialmente pelos recém-ingressos. Suas intimidações incluem proibições de ir a determinadas festas e até ameaças de exclusão dos alunos do convívio universitário como um todo, sob a falso argumento de “conscientização sobre o estilo de vida universitário” .
Recentemente, a situação na FDRP se tornou insustentável quando um aluno que decidiu não usar sua coroa foi abordado agressivamente por um grupo de veteranos enquanto conversava com primeiranistas. Em tom claramente odioso, os veteranos proferiram aos gritos ameaças como “você devia morrer”, “nós ainda iremos te encontrar sozinho” e indagaram por que seus colegas estariam conversando com ele. Além disso, recomendaram que seria melhor que ele fosse procurar “seu grupo de amigos viadinhos [sic]”, referindo-se a seus amigos LGBT.
A diferença entre integração e violência torna-se menos discernível quando se naturaliza o denominado “trote” como prática comum de recepção de calouros. Na delicadeza do momento de ingresso na universidade, veteranos apropriam-se do discurso de integração dos alunos entre si e revestem seus atos de suposta legitimidade para a prática de “tradicionais trotes”. O recrudescimento da violência nesses rituais de recepção reproduz uma série de preconceitos e abusos no trato com os novos alunos em nome daquilo que se acredita ser apenas uma peça de humor.
Deve-se salientar a necessidade de conscientização de todos os alunos da FDRP a respeito do trote que, embora possa ter seu caráter recreativo, não deve ser usado como instrumento discriminatório e violento. Os costumes de um determinado grupo de universitários não podem ser aceitos cegamente, tampouco usados para mascarar atitudes sexistas, homofóbicas ou de qualquer outro cunho discriminatório. É necessário por um fim a essas repressões, com vistas à pluralidade e à diversidade de opiniões.
Com fonte EPTV. Foto reproduçao.