Todos os dias o empresário Mário Fernando Berlingieri, de 65 anos, relembra com carinho os bons momentos que viveu ao lado dos pais, em Jaboticabal, no interior de São Paulo. Parado em frente a um quadro colocado na sala de trabalho, ele observa as cores, os detalhes da paisagem rural, do pescador à beira do lago e da mulher estendendo roupas no varal. Uma obra de arte que remete às lembraças da família, mas que guarda uma característica inusitada: foi pintada com as cinzas do casal. "É mais do que uma peça decorativa, é uma lembrança especial das pessoas que amamos."
A ideia de eternizar os pais em uma tela surgiu há dois anos, quando Berlingieri soube da técnica até então pouco difundida no país. A aprovação foi unânime entre os irmãos, já que o quadro seria uma forma de homenagear a mãe, morta quando os filhos eram adolescentes, em 1965, e também o pai, que deixou a família há 29 anos. O empresário conta que foi ele próprio quem sugeriu o tema da pintura a um artista plástico da cidade, que misturou as cinzas com a tinta à óleo.
“Meu pai era um caboclo, descendente de italiano e gostava muito de pescar. Minha mãe também era uma cabocla, veio de Minas Gerais. Então, sugeri um homem pescando e uma mulher estendendo roupa em um rancho, na beira do rio. Um ranchinho bem simples, saindo fumaça da chaminé. Em cinco minutos de conversa, ele entendeu o que eu queria”, diz o empresário.
Colocar os planos em prática não foi difícil. A família de Berlingieri é proprietária de uma das duas funerárias de Jaboticabal, que também possui um crematório, o primeiro na região de Ribeirão Preto (SP). O empresário decidiu então exumar os restos mortais do pai e da mãe, enterrados na cidade, e cremá-los. "Todos gostaram muito da ideia, foram favoráveis, até mesmo porque a gente não precisa ir ao cemitério. Cada vez que eu olho a tela, fico admirado. Recordo as coisas boas do meu pai e da minha mãe", afirma.
O quadro
O artista plástico Paulo Antônio Tosta relembra que ficou admirado ao receber a encomenda. Ele diz que trabalha com desenho e pintura há 20 anos, e que já havia lido sobre a possibilidade de usar cinzas de humanos em obras de arte, mas nunca havia realizado um trabalho semelhante. Entretanto, aceitou o desafio e preduziu o quadro em apenas um dia, após ouvir as sugestões da família dos homenageados.
Tosta explicou que utilizou as cinzas como uma espécie de aglutinante para as tintas, o que proporciona uma secagem mais rápida da substância na tela. Além disso, os restos mortais foram usados apenas nos tons mais escuros da casa e das figuras do pescador e da mulher. "Não pensei duas vezes, é uma ideia muito interessante. É uma forma de guardar uma recordação alegre, sem aquele contexto fúnebre", afirma.
Mas apenas parte das cinzas foram usadas no quadro. O que sobrou permanece guardado com a família e deve ser usado de outra forma, já que, atualmente, é possível até fabricar joias com restos mortais de entes queridos, como explica Berlingieri, que passou a estudar mais profundamente o assunto.
"Acredito que no futuro, não muito distante, a maioria das pessoas vai optar pela cremação. Não só pela falta de espaço, mas porque a família mudou. Hoje, dificilmente, a pessoa mora na cidade onde moram os pais. Uns vão para o exterior, outros fazem pós-graduação, buscam trabalho e, no fim, ficam distante da família, com aquela responsabilidade de cuidar do túmulo. A gente precisa mudar essa forma de encarar a morte", diz.
G1