Sem saber, ao menos quatro jovens mulheres de São Paulo dizem que viraram "cobaias" de dois coaches estrangeiros em uma festa que funcionou como aula prática de um curso que ensina homens a conquistar mulheres.
O evento foi em uma mansão no Morumbi, na Zona Sul de São Paulo, promovido por Mike Pickupalpha e David Bond, do site "Millionaire Social Circle", ou "Círculo Social de Milionários". Mike já apareceu em canais no Youtube filmando mulheres com câmeras escondidas em diversos países. “David Bond” é Steven Mapel, e diz ser um especialista em namoro on-line e produtor de conteúdo digital.
Em entrevista na noite de terça (14), Mike foi perguntado mais de uma vez pelo g1 se as mulheres sabiam que eram cobaias de um curso de conquista. Ele não respondeu diretamente. Em vez disso, apontou que se tratava de um evento em que havia adultos "que escolheram estar lá por livre e espontânea vontade".
O curso, oferecido a estrangeiros de vários países, cobra a partir de US$ 12 mil (R$ 63.046) em troca de consultoria de conquista e viagem de duas semanas para algum país. Além do Brasil, houve edições na Costa Rica (em fevereiro de 2022), Colômbia (julho de 2022) e Filipinas (agosto de 2022). A próxima etapa será na Tailândia, em agosto. O pacote com seis países, chamado de World Tour, sai por US$ 50 mil (R$ 262.695), segundo o site do grupo.
“Venha explorar com David e Mike e conheça as mulheres brasileiras ao redor do mundo que são conhecidas por serem divertidas, curvilíneas e apaixonadas”, disse o anúncio da viagem ao Brasil.
Em um vídeo, a dupla exibe o kit a ser levado na bagagem: pílulas do dia seguinte, usadas para evitar gravidez em relações sexuais sem preservativo, camisinhas e perfumes com feromônios --que supostamente secretariam substâncias para chamar atenção das mulheres. Em um vídeo, Mike chamou as pílulas seguintes de "plano B".
Quatro mulheres relataram ao g1 que não sabiam que fariam parte de uma aula prática de conquista. Duas chegaram à festa por meio de convites em redes sociais e duas ao conhecer de alunos do curso no Tinder, um aplicativo relacionamento.
Uma fez um boletim de ocorrência eletrônico na Polícia Civil para registrar que foram filmadas sem autorização e que poderiam ser usadas no curso. Todas disseram que não sabiam que os homens estrangeiros faziam parte das "aulas". As mulheres pediram que a identidade delas fosse preservada.
Foi esse aspecto — o fato de as mulheres não saberem que eram cobaias — que fez relatos surgirem nas redes sociais nas últimas semanas.
A advogada e desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Cecilia Mello, ouvida pelo g1, afirmou que as condutas podem ser consideradas tráfico de pessoas e favorecimento da prostituição (leia mais abaixo).
A mulher que registrou o boletim de ocorrência disse ter visto vídeos publicados em que ela aparece com os alunos da "mentoria" de conquista. Foi o que a fez querer denunciar. Ela disse ter conhecido um rapaz no Tinder e sido convidada a jantar com "amigos" dele.
“Saímos algumas vezes até ele me convidar para o jantar, que me disse que seria com amigos deles. Foi normal [o jantar] e conversamos sobre assuntos tranquilos, até porque eu queria praticar o inglês. Ficavam filmando o tempo todo e eu tentava me esquivar porque não gosto que me filmem”, lembra.
Nos dias seguintes, a brasileira foi convidada pelo homem para a festa na mansão.
“Na festa tinham muitas mulheres e nem todas sabiam falar inglês. Havia funcionários, DJ, garçons. Uma das mulheres me disse que foi por causa de um anúncio e aí achei estranho, porque ela disse que pagaram o transporte também. Eu achei que era algo mais reservado."
A outra mulher também conheceu um homem pelo Tinder.
Ela disse que deu "match" com um americano e foi convidada para jantar. O rapaz disse que fazia parte de um grupo de negócios e a convidou para um primeiro encontro. Lá, afirmou, havia outras mulheres que estavam com os "amigos" dele. Ela não sabia, mas eram outros alunos do curso.
“Conheci outras meninas brasileiras lá e até gostei, porque eu não sei muito bem inglês. Era um restaurante muito chique, até exagerado. O rapaz que eu saí me tratou muito normal, bem de início, criando um vínculo. Tinha gente de vários países. Não me senti desconfortável naquele momento.”
O encontro foi antes da festa. Dias depois, ela recebeu um convite para colocar dados pessoais e fazer parte da lista do evento.
“Não fiquei até o fim da festa. Interagi mais com a meninas que conheci no jantar, mas conheci uma menor de idade que disse que conhecia pessoas na organização. Disse que logo faria 18 anos, mas estava numa festa de comida e bebidas à vontade. Não vi ela ficando com ninguém, mas disse que se sentiu incomodada ao ter visto um casal fazendo sexo em um dos quartos.”
Ao menos duas denunciaram o caso para a polícia e alegam foram filmadas sem autorização; Material colhido por eles é usado em grupos e para publicidade;
O que dizem os citados
Mike Pickupalpha, do site "Millionaire Social Circle", falou com o g1 na noite de terça-feira (14). Perguntado por mais de uma vez se informava as mulheres de que a festa era aula prática do curso de conquista, não respondeu.
“Foi uma festa coorganizada com meus amigos brasileiros. Alguns trouxeram suas próprias namoradas. Uma festa com adultos consentidos que escolheram estar lá por livre e espontânea vontade. Comida, segurança e transporte adequado foram fornecidos.”
Perguntado sobre menores de idade no evento, o coach não negou, mas disse possivelmente haver câmeras de segurança no local. “No formulário de candidatura dissemos mais de 18 anos e pedimos à segurança para fiscalizar e fiscalizar todos.”
'Fraude está no uso dissimulado e mentiroso'
O g1 procurou o Ministério do Turismo, mas não houve resposta até a última atualização.
A advogada e desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Cecilia Mello, analisou o site e o “modus operandi”. Cecília afirma que o Tinder é “um aplicativo de encontros voluntários” e a vontade de cada um é o que deve prevalecer.
“A fraude está no uso dissimulado e mentiroso do aplicativo para aquilo que não será um encontro voluntário, mas sim ‘um treinamento’ de relacionamento para homens endinheirados num projeto de afirmação de suas virilidades, incapazes de gerir as suas próprias vidas afetivas e amorosas, mas plenamente capazes de optarem pela prática de crimes voltados à exploração sexual de mulheres em território brasileiro.”
“Tudo isso dentro de um suposto treinamento que visa resultados numéricos, instantâneos e de convencimento da mulher para o sexo no primeiro encontro, com ‘domínio da arte de abordagem’ em qualquer local”, completa.
A especialista explica que ao forjar se tratar de um encontro voluntário, praticar exploração sexual e oferecer vantagens os casos podem ser caracterizados com crimes previstos nos artigos 149-A e 228 do Código Penal.
“O primeiro de tráfico de pessoas por ‘agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso’ para o fim, dentre outros, de exploração sexual. A pena é de reclusão de quatro a oito anos e pode ser aumentada de um terço até a metade se a vítima for retirada do território nacional”.
O segundo de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual “imputável ao próprio agressor, ao aliciador, ao intermediário que se beneficia comercialmente do abuso. A pena é de dois a cinco anos e multa”, detalha.
G1