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Reservatórios estão há 10 anos em seca; estiagem expõe ponto cego e encarece a conta de luz
Por Administrador
Publicado em 08/09/2025 22:53
Brasil

Nos últimos 10 anos, as principais bacias do país passaram mais tempo secas do que cheias.

E isso escancara uma vulnerabilidade no nosso sistema elétrico: o modelo que faz a previsão dos reservatórios não é atualizado há décadas e por causa disso não leva em consideração as mudanças climáticas.

A falta de previsibilidade dos recursos é um fator que pode agravar a crise de energia, de acordo com especialistas.

O cenário de estiagem prolongada se repete em diferentes regiões, mas a análise do Centro Nacional de Monitoramento de Desastres (Cemaden) obtidos pelo g1 com exclusividade mostra que nas bacias hidrográficas mais estratégicas do país — como Paraná, São Francisco e Tocantins — a última década foi marcada por uma sequência de secas cada vez mais severas.

 Essas bacias atendem as principais hidrelétricas nacionais como Furnas, Sobradinho, Porto Primavera, Itaipu, Rosana, Tucuruí, Serra da Mesa e Três Marias.

Série histórica mostra que bacias que atendem reservatórios passaram mais tempo secos que cheios — Foto: Arte/g1

Série histórica mostra que bacias que atendem reservatórios passaram mais tempo secos que cheios — Foto: Arte/g1

Quem estima a capacidade de geração das hidrelétricas, responsáveis por cerca de 60% da energia no Brasil, é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Seu sistema olha para o passado para entender o que vai acontecer no futuro. E isso funcionava até dez anos atrás. No entanto, agora, as projeções acabam não identificando o problema.

Isso porque o ONS ainda baseia suas previsões em parâmetros de probabilidade que são estimados a partir de séries históricas e desconsidera a previsão dos efeitos do aquecimento global e das alterações no regime de chuvas.

  Em resumo: para estimar o quanto de água vai desaguar nos reservatórios, eles usam as estatísticas como a média e o desvio padrão. Para saber esse número, o sistema usa o que foi observado ao longo de 90 anos. Como a tendência de seca começou a cerca de dez anos, esse índice acaba sendo encoberto pela situação de normalidade dos outros 80 anos. Com isso, não reflete a realidade.

 O próprio órgão reconhece a limitação:

“Os dados históricos das vazões necessitam de atualizações para, de fato, contemplarem as mudanças climáticas e eventos extremos”.

Apesar disso, diz que as mudanças climáticas são um fator de atenção para a órgão. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), empresa federal que faz os estudos para subsidiar o ONS, diz que tem desenvolvido documentos técnicos que buscam contribuir com esse debate, mas não informou se há alguma previsão para ajustes no sistema usado hoje. (Leia as notas na íntegra)

Segundo especialistas, esse descompasso gera incertezas sobre o fornecimento futuro e pesa no bolso do consumidor.

 Desde agosto, a conta de luz está mais cara, justamente pelo baixo nível dos reservatórios. A Aneel acionou a bandeira vermelha patamar 2, a mais cara possível.

Abaixo, entenda:

Como os números mostram a mudança no padrão de chuva
O g1 teve acesso aos gráficos de todos as bacias do país desde os anos 1980 e selecionou as que atendem os principais reservatórios do país.

➡️ Os dados nacionais mostram que de Norte a Sul, os gráficos mostram um padrão semelhante na maioria dos reservatórios: uma mudança no ciclo a partir de 2014, com uma seca persistente. Antes disso, havia uma oscilação entre períodos de cheia e seca.

Um exemplo é a bacia que atende o reservatório de Serra da Mesa, em Goiás, o maior do Brasil em volume de água, com capacidade de 54,4 bilhões de m³. A análise mostra que:

Até 2013: seguia-se o padrão de alternância entre estiagens e cheias. O maior período de seca até então havia sido de 1998 a 2000 — uma estiagem de dois anos, intensa, mas sem atingir níveis extremos.
Depois de 2013: inicia-se uma sequência de seca que se estende até 2020 — sete anos seguidos. Nesse período, a intensidade da estiagem superou todas as marcas anteriores. Desde então, foram registrados curtos intervalos de cheia, que não duraram sequer um ano. (Veja abaixo)

Dados de bacias que atendem os reservatórios da usina de Serra da Mesa — Foto: Arte/g1

Dados de bacias que atendem os reservatórios da usina de Serra da Mesa — Foto: Arte/g1

Outro exemplo é a bacia que alimenta o reservatório de Furnas, essencial para o abastecimento das regiões Sudeste e Centro-Oeste.

Até 2015: o reservatório seguia um ciclo de alternância entre cheias e secas, o que fazia com que os períodos de baixa não durassem tanto tempo. Até esse ano, a maior estiagem registrada tinha sido entre 2001 e 2004, mas sem atingir níveis considerados extremos.
Depois de 2015: a bacia enfrenta a seca que atinge a região Sudeste e afeta Furnas. O período seco se prolongou por sete anos consecutivos. Em seguida, houve uma breve trégua, com um evento isolado com chuvas acima da média, mas que não se repete mais. Assim, a bacia que atende o reservatório continua passando muito mais tempo sob estiagens intensas do que sob cheias.

Dados da bacia que atende a hidrelétrica de Furnas — Foto: Arte/g1
Dados da bacia que atende a hidrelétrica de Furnas — Foto: Arte/g1

Na bacia que atende o reservatório Três Marias, o padrão é semelhante:

Antes de 2015: havia alternância entre períodos de cheia e estiagem, com variações regulares ao longo dos anos.
Depois de 2015: a bacia é afetada pela grande seca que atinge a região sudeste. Com isso, há o início de uma estiagem prolongada, que se intensifica e atinge patamares inéditos na região. Há um evento extremo de chuva que aumenta os índices na bacia, mas ele volta a uma estiagem prolongada.

Dados da bacia que alimenta a hidrelétrica de Três Marias — Foto: Arte/g1

Dados da bacia que alimenta a hidrelétrica de Três Marias — Foto: Arte/g1

Esses são apenas alguns exemplos de um padrão que se repete na maioria das bacias pelo país.

A doutora em hidrologia e pesquisadora do Cemaden, Adriana Cuartas, que também faz o monitoramento de bacias, explica que há alguns anos os pesquisadores perceberam que, depois da crise de 2015, as bacias não voltaram a um ciclo normal.

Naquele ano, houve uma seca intensa. Cidades passaram por racionamento, reservatórios e rios pelo país ficaram esvaziados. Milhões de pessoas foram afetadas.

“Desde então, o padrão que temos é de seca e secas cada vez mais extremas. Quando temos um breve período de normalidade, em poucos meses o reservatório volta a um ponto crítico porque não há chuva suficiente para repor a água que estamos usando”, explica Cuartas.

Para Adriana, o país não vem vivendo crises que são pontuais, mas um novo normal do clima, reflexo do aquecimento global e ao desmatamento, que muda o padrão de chuvas.

“É urgente olharmos esse problema e pensarmos em adaptação e mitigação. Os dados nos dão sinais de que não é mais um período de crise, esse é um novo normal no país. O ONS tem uma previsão de aumento na demanda de energia e seguramente não temos chuva o suficiente para repor as bacias e atender o país”, explica.

Onde está o ponto cego no país?

A mudança nos padrões de chuva já vem acendendo um alerta no setor elétrico:

A conta está ficando mais caras há meses consecutivos;
Há um alerta de baixa nas bacias
E uma previsão de que a demanda suba em até 14% nos próximos cinco anos.
Nesse ano, o ONS chegou a recomendar, entre outras medidas, a retomada do horário de verão para reduzir o consumo em determinados horários e aliviar o sistema. Ainda não há uma definição sobre isso.

Esse não é um cenário exclusivo deste ano, mas vem se repetindo nos últimos dez. A pergunta que o g1 fez ao ex-diretor do ONS Luiz Barata e o ex-diretor da Aneel Jerson Kelman é: estamos na iminência de uma crise?

Eles explicam que há um risco no futuro, que é incerto e o maior problema está na forma como nos preparamos. Segundo eles, há um ponto cego no sistema.

 Atualmente, o ONS utiliza um modelo de previsão para estimar a situação dos reservatórios nos próximos cinco anos.

Como esse sistema funciona:

A ferramenta se baseia em dados desde 1930;
Os dados são atualizados, mas ao tentar prever o futuro, ele usa estatísticas que levam em conta o que aconteceu nos últimos 95 anos;
Os dados mais antigos, correspondentes aos períodos mais úmidos, acabam prevalecendo nas estimativas das estatísticas sobre os dados mais recentes, que são dos períodos mais secos.
Em resumo: o modelo matemático acaba sendo otimista porque a análise dos dados do passado superestima o volume de água que os reservatórios terão no futuro. Isso faz com que o sistema aponte que vamos ter uma quantidade de água que, na prática, não chega.

 Além de só olhar para o passado, ele também não leva em conta o panorama desenvolvido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), referência mundial no assunto, que ajuda a pensar cenários futuros.

“Os modelos utilizados pelo Operador, no horizonte de 9 meses e de até cinco anos – Plano da Operação Energética (PEN) e Programa Mensal da Operação (PMO) – consideram dados históricos das vazões e necessitam de atualizações para, de fato, contemplarem as mudanças climáticas e eventos extremos”, admite o ONS.
Luiz Barata, que comandou o ONS entre 2016 e 2020, explica que tentou modernizar os modelos para incluir projeções mais alinhadas ao cenário climático atual, mas não teve sucesso.

“Insistimos com o centro de pesquisas sobre a necessidade de rever a cadeia de modelos utilizada nos estudos do operador, mas eu fracassei nessa tentativa de modernizar e eles são os mesmos até hoje”, diz Barata, que hoje preside a Frente Nacional dos Consumidores de Energia.

O g1 também conversou com Jerson Kelman, referência no setor elétrico, já foi diretor-geral da Aneel, presidente da Agência Nacional de Águas (ANA) e pesquisador do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), responsável por desenvolver os estudos técnicos que sustentam o trabalho do ONS.

Segundo Kelman, desde que atuou no Cepel, nos anos 70 e 80, os modelos usados para projeções no setor elétrico quase não mudaram.

"Agora, é mais do que claro que precisa ser feita uma atualização. A mudança climática existe. Os eventos extremos estão cada vez mais frequentes e intensos", explica.

E por que isso não foi feito?
O g1 questionou os dois especialistas que já estiveram à frente do órgão e podiam liderar o movimento de mudança. As justificativas foram:

Para Kelman, o problema é que ainda havia dúvidas sobre o real impacto das mudanças climáticas, apesar dos alertas do IPCC existirem desde os anos 1990.

"A mudança climática há 10 anos não era uma hipótese amplamente aceita. Agora, dez anos depois, pouca gente acha que não tem mudança climática", diz o ex-diretor.

Já Barata aponta que o problema foi a resistência à mudança, ao relembrar o período em que esteve à frente do ONS.

"Durante todo o tempo que estive no ONS, de 2016 a 2020, preciso dizer que a organização resiste em mudar. É uma resistência por entender que há anos é feito assim e funcionou. Por que mudar? Isso exige muito processo. Agora é urgente", diz.

O g1 questionou o ONS que explica que suas projeções são de curto prazo e, por isso, não olham as mudanças climáticas, mas que reconhece que elas são um fator de atenção. (Leia a nota na íntegra abaixo)

Qual o risco para a segurança energética no país?
Hoje, a água é muito importante para a produção de energia no país. Cerca de 60% de toda a nossa energia vem de hidrelétricas. Por isso, os reservatórios precisam ser preservados.

Assim, quando se identifica que a chuva vai ser pouca e os níveis vão descer, o ONS precisa acionar outras fontes, como as termelétricas. Isso é feito para equalizar o sistema.

 No entanto, se modelo for otimista, no sentido de prever mais chuva do que efetivamente o país vai ter, acaba usando muita água do estoque armazenado nos reservatórios no presente. Isso pode gerar racionamentos e encarece o custo da energia no futuro.

Barata explica que, da forma como o sistema funciona hoje, as ações acabam sendo tomadas apenas “muito perto do problema” e que “as medidas corretivas tornam a energia mais cara”.

O especialista afirma que o país tem reserva de energia para atender à demanda, mas, no longo prazo, sem considerar as mudanças climáticas, isso pode afetar o sistema e elevar ainda mais o custo da energia para o consumidor.

"Se a gente continuar usando o mesmo sistema, com o avanço das mudanças climáticas como estamos vendo, talvez a solução que temos hoje, como ativar termelétricas, já não vá mais ser o suficiente. Há um risco futuro. Além da energia ficar ainda mais cara", explica.

Kelman diz que no longo prazo, isso pode acarretar problemas graves para o setor de energia.

"Precisamos priorizar isso, sob pena de cometer erros graves. Esses modelos não servem apenas para determinar quanto cada usina produz para atender à demanda, mas também produzem o preço da energia. Uma falha afeta relações comerciais entre agentes do setor elétrico e consumidores da ordem de bilhões de reais”, explica.

Clauber Leite, diretor de bioeconomia e energia renovável do instituo E +, que atua com transição energética, explica que o país vive há anos na eminência de uma crise pela forma como o sistema funciona e que isso é um risco.

"A gente vive na eminência de termos uma crise desde 2014. Precisamos mudar a forma como operamos o sistema para ter segurança. Isso pode impactar ainda mais o custo, a vazão, a disponibilidade de água. Isso pode desequilibrar o sistema", explica.

Ele reforça que esse o cenário recente, com secas e acionamento de bandeiras, deve servir para a operação como um alerta para a mudança.

Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, explica que isso é um risco para a segurança energética do país no longo prazo.

"O reservatório é a segurança de energia. Ele precisa ser preservado e, se o sistema não sabe que a água vai acabar mais rápido que o esperado, ele age tarde. Isso é um risco. Precisamos urgente revisar como isso é feito sob risco de ficarmos vulneráveis no futuro".

O Brasil vive um novo normal?
Para Adriana Cuartas, que acompanha a hidrologia no país há décadas, e Carlos Nobre, uma das maiores autoridades em mudanças climáticas, o Brasil já enfrenta um novo normal climático — resultado direto das ações humanas.

Os dois especialistas destacam o impacto do desmatamento histórico, ainda significativo mesmo com as reduções recentes.

“A perda de toda a vegetação que tivemos ao longo da nossa história mudou a umidade do país e, consequentemente, os ciclos das chuvas. Temos a junção do nosso panorama regional, que é o desmatamento, com a exposição ao aquecimento global. O Brasil vive um novo normal”, explica Cuartas.

“Não dá mais para crer que isso é uma crise que vai passar, já vivemos os impactos de um país mais quente e mais seco que o normal”, reforça.

Carlos Nobre, reforça que essa não é uma crise momentânea, mas um retrato do novo normal do clima com as mudanças climáticas.

"O país está mais quente e com menos chuva. Essa não é uma crise que estamos enfrentando agora e que têm previsão de passar. É o novo clima no Brasil, uma nova realidade aletrada pelas mudanças climáticas", diz Nobre.

O coordenador geral de Operações e Modelagem do Cemaden, Marcelo Seluchi, ainda reforça a influência dos aquecimentos dos oceanos que vêm pressionando ainda mais a mudança nos padrões de chuva no país.

Os dados mostram que em momentos em que a seca se intensificava em algumas das bacias isso acontecia por interferência de movimentos como o El Niño.

"Temos um país mais quente por causa das mudanças climáticas e todo esse calor ainda é reforçado pelo aquecimento dos oceanos, como o El Niño", explica.

O que dizem o ONS e a EPE

Nota do ONS:
As mudanças climáticas são um fator de atenção para toda a sociedade, incluindo o setor elétrico. No caso do ONS, o horizonte máximo dos estudos eletroenergéticos é de cinco anos, não considerando os cenários climáticos provenientes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que contemplam projeções até o ano de 2100.

Os modelos utilizados pelo Operador, no horizonte de 9 meses e de até cinco anos - Plano da Operação Energética (PEN) e Programa Mensal da Operação (PMO) - consideram dados históricos das vazões e necessitam de atualizações para, de fato, contemplarem as mudanças climáticas e eventos extremos.

Já nas previsões de curto prazo são levadas em consideração informações de alguns dos melhores modelos de previsão do tempo disponíveis no Brasil e no mundo (modelos do centro europeu e norte americano).

Nota da EPE:
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) acompanha com atenção as discussões sobre as mudanças climáticas na matriz elétrica e energética brasileira. O tema é complexo e exige uma abordagem robusta, multidisciplinar e integrada, considerando as diversas naturezas dos impactos, bem como as diferentes instituições do setor.

Tendo em vista a importância crescente de se incorporar aspectos de mudanças climáticas nos estudos e análises de planejamento energético, temos desenvolvido documentos técnicos que buscam contribuir com esse debate. Pode-se citar o "Roadmap para o Fortalecimento da Resiliência do Setor Elétrico em Resposta às Mudanças Climáticas", que vem sendo elaborado nos últimos meses, com três documentos já publicados.

Considerando sua competência legal de prestar serviços na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético, a EPE mantem seu olhar atento aos desafios da transição energética, especialmente no que se refere à segurança energética nacional.

 

G1

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