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"No lixão, vi até bebê morto", diz catadora citada por Dilma
04/12/2014 09:47 em Brasil
Por alguns minutos, nessa quarta-feira, a catadora de lixo reciclável Matilde Ramos da Silva, de 30 anos, deixou o quase anonimato para se tornar entre os colegas “a homenageada” por ninguém menos que a autoridade máxima do País, a presidente da República Dilma Rousseff. Mãe desde a adolescência – ela tem um menino de 15 e um de 13 anos –, Matilde foi citada pela presidente na feira anual Expocatadores, no Anhembi, zona norte de São Paulo, como exemplo de uma “trajetória de sucesso” no setor. “Para mim, é um exemplo do que queremos transformar e do que significam cooperativa e rede”, declarou a petista.
 
Natural de Ourinhos, cidade do interior de São Paulo com pouco mais de 100 mil habitantes, Matilde é a terceira geração da família a lidar com o lixo – e a primeira a efetivamente tirar o sustento não do aterro, mas dos descartes que não vão mais para ele, graças à reciclagem. Foi no aterro, aliás, onde conheceu o namorado e atual marido, e foi pelo trabalho nele, dos cinco aos 26 anos de idade, que coleciona episódios que vão do preconceito pelo cheiro impregnado no corpo, e que ela sequer percebia, ao horror de ter encontrado um bebê sem vida, em um saco de lixo. Mas foi também pela mesma atividade que conta, orgulhosa, sobre a viagem bancada pelo governo federal à Itália, em abril deste ano, para conhecer o sistema de separação e coleta nas cidades de Roma e Turim.
 
Apesar da homenagem da presidente, Matilde se define uma pessoa “realista” diante do futuro da reciclagem e do catador de resíduos sólidos: “Ainda falta muito para as condições serem as ideais, e tem uma parcela da sociedade que não quer que a gente seja independente – porque ela ganha com a nossa miséria. As pessoas precisam lutar, e vejo que estão fazendo isso”.
 
Leia, abaixo, o relato feito ao Terra pela catadora homenageada por Dilma.
 
*
 
Meus avós e meus pais trabalhavam no aterro sanitário, e eu comecei ainda com cinco anos. Com oito, eu já desenvolvia atividades de separação do lixo que não precisava estar lá. Ficava de segunda a sexta-feira no lixão, tomava banho em um chuveiro público por perto e ia para a escola.
 
Me machuquei muitas vezes. Com 12 anos quase perdi o pé, porque pegou fogo (o aterro produz combustões espontâneas) e eu estava praticamente descalça. Ainda tenho as marcas das queimaduras.
Em 2002, conheci o Movimento Nacional de Catadores de Lixo Reciclável pela cooperativa de uma cidade próxima a Ourinhos, Assis. Me mexi para atuar também em cooperativa e de 2003 a 2009 foi o que fiz, apesar de ainda estar no lixão. E sempre ouvindo as prefeituras alegarem as mais variadas desculpas: que não tinham dinheiro para reciclagem, ou que não éramos capazes de fazer aquilo, ou então, que não havia equipe técnica para nos ajudar... Denunciamos as incinerações de lixo que ainda havia na nossa cidade – e isso é um atraso tremendo nessa política de tratamento de resíduos –, e em 2010 a prefeitura assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público para acabar com isso.
 
Desde então, a cooperativa firmou um acordo de prestação de serviços em que o poder público disponibiliza dois caminhões e motoristas para que levemos o lixo que é separado até as centrais de separação. Somos hoje 103 funcionários.
 
Até 2010, que foi quando deixei de frequentar o lixão, eu passava o dia todo mexendo com lixo e não percebia que aquilo me fazia feder. As pessoas percebiam, mas para mim era algo natural. No mesmo ano, o prefeito da cidade ganhou um prêmio de “amigo do catador” pelo trabalho que fazíamos. A sucessora dele ganhou também, aí fui para a Itália conhecer o sistema deles.
 
Todo mundo costuma dizer que o europeu é mais educado com tudo, e lá, de fato, o processo de reciclagem é muito mais incentivado pelo governo do que no Brasil. Só que lá não são cooperativas, ou catadores, mas empresas que fazem isso e lucram. E não lucram pouco. Só que os moradores também, estive em Turim e em Roma, são multados e não têm o lixo recolhido se não o separarem.
 
Ainda temos aqui gente grande que lucra também bastante com a coleta do lixo normal. Porque é muito mais fácil para essas pessoas serem donas do sistema do que se ter um sistema popular.
 
No lixão, era comum quem ia lá visitar para conhecer reclamar do mau cheiro, tapar o nariz, passar mal. A gente que trabalhava ficava até bravo, poxa: para que reagir daquele jeito diante do nosso trabalho, do nosso sustento? Hoje eu passo por algum lugar assim e vejo que de fato o cheiro é muito forte.
 
Eu convivia com animais mortos, restos de banheiro, sujeira, lixo de todo tipo que as pessoas jogam. O mais assustador nesses anos todos foi quando achei um bebê, morto, dentro de um saco plástico. Nunca mais vou esquecer.
 
Também não esqueço as vezes em que eu ou minha família sofremos na pele o preconceito pela atividade. Pobre de quem pensa que isso não existe... Uma vez, por exemplo, fui chamada à escola (pública) do meu filho. Motivo: ele tinha jogado em um menino da turma dele uma latinha que esse garoto tinha dado para ele levar até mim. Cheguei à sala de aula e a latinha ainda estava lá. Não fizeram nada com esse menino, mas meu filho foi para a diretoria. Eu ri por dentro, porque já estive no lugar dele e fiz o mesmo.
 
Mas saber que o professor falou para ele que, se não estudasse, “você vai fazer o mesmo que sua mãe faz” me doeu – pedi para ele se desculpar e lembrei que um catador como eu, ganhando R$ 1,1 mil em média, por mês, muitas vezes é mais bem remunerado até que um professor. Quem era ele para dizer quem era melhor ou pior que alguém? Só que a sociedade é assim.
 
Recolhemos hoje 240 toneladas de lixo reciclável em Ourinhos todo mês. Tenho certeza que o futuro dos meus filhos vai ser muito melhor, e o presente deles já é melhor do que o passado meu e do meu marido, que também tirei do aterro. Meu filho mais velho me disse esses dias que quer ser engenheiro de produção, e sabe para quê? Para trabalhar na cooperativa. Porque hoje, se a gente vai para o matadouro, ao menos vai berrando: as pessoas finalmente estão entendendo que precisa lutar e ser  ator político das próprias mudanças.
 
Terra
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